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Confira a Crônica do Professor Valter Silva: SEM TEMPO PRA SER FELIZ

 


A pandemia da Covid 19 talvez seja um ensaio prévio para a perda definitiva do ócio, uma vez que na sociedade atual já não há espaço para o tempo livre. Se antes, nossos dias eram ocupados em cursos, esportes ou eventos diversos, agora o trabalho, paulatina e rapidamente se configura como um valor acima de todos os demais e o ócio passou, então, a ser relegado a um segundo plano.

A constatação do fim do ócio é extremamente preocupante, sobretudo, se levados em conta seus diferentes propósitos que implicam em uma pausa para refletir sobre a vida e na organização mental dos acontecimentos diários, além de uma melhor compreensão do homem a respeito de si mesmo. A ociosidade se constitui, desse modo, em um período de pensar e organizar experiências, aproveitando-as na elaboração de novos projetos e caminhos; sendo enfim, a garantia de estarmos em contato com nosso mundo interior, ou, em outras palavras, com nosso próprio eu.

Enquanto na Grécia Antiga o ócio esteve associado a um voltar-se para dentro de si e conhecer o que estava ao redor; na Idade Média, por seu turno, o tempo ocioso continuou a ser valorizado; porém, como um meio de se chegar a Deus, onde a elite daquela época justificava seu ócio de levar uma vida monástica regrada e repleta de orações e de festas religiosas, considerando o trabalho como algo impuro, devendo, portanto, ser rejeitado, pois, comprometia a salvação da alma que se sobrepunha a qualquer outro objetivo.

O conceito grego de ócio perdurou até a existência de uma sociedade escravocrata, ocasião em que os gregos tinham suas necessidades básicas satisfeitas por escravos que laboravam por eles. Aristóteles, todavia, já profetizava nesse tempo que se cada utensílio pudesse executar por si só sua função própria, a exemplo das obras de Dédalo que se moviam por si mesmas ou como os tripés de Vulcano que se punham de forma espontânea ao seu trabalho sagrado, e se, enfim, as lançadeiras dos tecelões tecessem por si próprias, o chefe da oficina já não teria necessidade de ajudantes, nem o senhor precisaria mais de escravos.

A partir da Revolução Industrial, já em pleno século XIX, a produção em larga escala passaria a fazer parte do cotidiano das pessoas. Dessa forma, os cidadãos ficaram totalmente atrelados ao trabalho, sendo o seu fazer absolutamente automático; sem tempo para refletir sobre suas próprias ações. Os indivíduos entravam, assim, em um processo maquinal, onde, antes de tudo, eram obrigados a provar que trabalhavam; ou melhor: que funcionavam.

Hoje em dia, as longas jornadas de trabalho são cada vez mais aceitas na sociedade pós moderna com o propósito de deixar os cidadãos, além de apáticos, culpados e cada vez mais ávidos em trabalhar. O desenvolvimento da tecnologia capitalista conduziu ao paulatino descréscimo da capacidade do trabalhador de se realizar como ser humano, reconhecendo-se naquilo que faz. Isso ocorre porque a divisão técnica da produção e sua crescente mecanização criam em seu íntimo uma contínua repulsa por seu oficio, tornando sua atividade maçante e incapaz de lhe proporcionar uma autêntica satisfação existencial.

Em sua frieza tecnocrática, o trabalho regido pela ordem capitalista torna-se apenas um mero recurso a fim de que o sujeito obtenha o mínimo para manter sua vida; na verdade, uma subvida. À medida em que a máquina se aperfeiçoa e dispersa ou, até mesmo, dispensa o trabalho humano com rapidez e perfeição vertiginosas, o operário ao invés de prolongar proporcionalmente seu tempo de repouso acaba redobrando o esforço empregado em sua jornada como se pudesse competir com a máquina em uma concorrência absurda e suicida.

É extremamente doloroso o preço a ser pago para a manutenção de um padrão de vida razoável na sociedade plutocrática, pois o empreendedorismo capitalista exige a progressiva diluição do limite entre a vida dedicada ao trabalho e o tempo de privacidade domiciliar. Assim, tanto a instituição pública, corriqueiramente explorada pela ditadura do privado, quanto a empresa particular transformam-se em verdadeiras sanguessugas da vitalidade humana ao descartar as pessoas tão logo estas sejam consideradas desnecessárias pelos mandatários financeiros ou pelos desumanos tecnocratas que infestam a esfera pública.

Com a instituída valorização do mundo das coisas paralelamente à desvalorização dos homens, o trabalho não produz apenas mercadorias, mas, ele próprio e também o trabalhador são transformados em mercadorias. Mesmo aquelas pessoas que desenvolvem uma atividade de caráter mental sofrem os efeitos desse desvalor humano. Se analisarmos, por exemplo, a vida atual dos docentes universitários, notaremos que existe a obrigatoriedade da sua produção, seja de textos, de orientações ou de teses cientificas. A vida intelectual, portanto, que deveria ser um trabalho de reflexão erudita e filosófica acaba se tornando uma simples produção que prevalece afinal, uma vez que o docente, embora possuindo o status de acadêmico, deve, antes de mais nada, provar a efetiva realização de seu trabalho.

Nessa conjuntura pautada pelo capitalismo o tempo livre tem significado somente de descanso ou de intervalo entre os períodos de trabalho a fim de restabelecer as energias necessárias para serem aplicadas em um outro momento da atividade produtiva. O tempo de lazer é assim legitimado como uma finalidade que ao invés de proporcionar a consciência crítica do trabalhador sobre suas relações laborais, promove justamente o fortalecimento dessas relações em benefício dos detentores das instituições produtivas.

Todo ato de reflexão ou de ruptura com a voraz dinâmica de exploração do tempo livre pelo excesso de trabalho é, em última análise, desprezado pela moral capitalista que exige a imediata automação da personalidade do ser humano, objetivando que o trabalhador possa dedicar todas suas forças a favor do crescimento econômico do sistema estabelecido; seja privado; seja público.

A pior servidão, entretanto, é a de natureza voluntária, onde mesmo frequentemente fustigado pelas agruras de suas atividades laborativas, o indivíduo considera essa a única forma de obter o bem-estar em sua vida e, por isso, defende radicalmente nas suas relações interpessoais, o discurso de seus opressores capitalistas. Satisfeito com o padrão de mediocridade a ele imposto pelas estruturas hegemônicas do poder e obtendo conforto e diversão cotidianos, nada mais é necessário a ele, ainda que haja uma multidão de miseráveis sofrendo bem debaixo do seu nariz.

*Por Valter Silva*
*Valter Silva é pedagogo*.