Diga News

AS APARÊNCIAS DO FORMAL

Logo após a Proclamação da República em 1889, as eleições, que haviam sido suspensas por algum tempo, foram retomadas já no ano seguinte, uma vez que a frequência de eleições eram grandes nessa época por ter o mandato de vereadores e de juízes de paz apenas dois anos; havia também eleições de senadores sempre que um deles morria e, além disso, a Câmara dos Deputados era dissolvida com muita frequência.

Esse era o lado formal dos direitos políticos que representava naquele momento de consolidação republicana um grande avanço em relação à situação colonial. É necessária, todavia, a indagação no que diz respeito à pluralidade desses direitos, buscando saber, por exemplo, como se davam as eleições, qual o significado delas na prática, quem era o cidadão que se apresentava para exercer seu direito político de votar e, principalmente, qual era o real conteúdo desse direito.

A pertinência desses questionamentos é justificada pela clara consciência do povo de que aqueles que eram guiados pelas aparências do formal estavam fora da realidade, eram ingênuos e só podiam ser objeto de ironia ou de gozação. Por outro lado, quem apenas observava, como fazia o povo do Rio de janeiro por ocasião das grandes transformações realizadas sem nenhuma consulta popular, não era visto como bestializado; ao contrário disso, era esperto; gozador, pois o povo sabia que o formal não era sério; que não havia caminhos de participação e que a república, enfim, não era prá valer.

Não é difícil, portanto, respondermos as perguntas formuladas anteriormente, sobretudo, porque os brasileiros tornados cidadãos pela recente constituição republicana eram as mesmas pessoas que tinham vivido os três séculos de colonização, marcados particularmente, pelo autoritarismo hierárquico e pelo sistema de escravidão, sendo 85% dessas pessoas analfabetas e incapazes de ler um jornal ou um decreto do governo; incluindo-se entre os iletrados muitos dos grandes proprietários rurais.

Com mais de 90% da população vivendo em áreas rurais sob o controle ou a influência dos grandes proprietários e apenas 10% habitantes da área urbana, muitos deles funcionários públicos controlados pelo governo, a maior parte dos cidadãos não tinha vivenciado o exercício do voto durante a colônia; por isso, também não possuía a noção do que fosse um governo representativo e muito menos o significado do ato da escolha de alguém como seu representante político.

Desse modo, somente uma pequena parte da população urbana teria a vaga noção do funcionamento e do caráter dessas novas instituições. O próprio sentimento de patriotismo não significava pertencer a uma pátria comum e soberana, mas era vinculado somente ao ódio pelo português cruel e dominador.

Apesar desse contraditório contexto, muitos cidadãos votavam; ou melhor dizendo, eram convocados às eleições pelas autoridades do governo, pelos patrões, pelos juízes de paz, pelos delegados de polícia, pelos padres e pelos comandantes da Guarda Nacional.

Combinando a influência do governo com a dos grandes proprietários ou dos comerciantes, a Guarda Nacional impunha um grande poder de pressão sobre os que iriam votar através de seus comandantes, superiores na ordem hierárquica aos votantes na emergente sociedade republicana.

A luta política era sempre muito intensa. Mas, o que estava em jogo não era o exercício de um direito da cidadania e, sim, o domínio político local, onde seu chefe não podia perder as eleições, pois tal fracasso significava desprestígio e, acima de tudo, perda do controle de cargos públicos como de delegados de polícia, juiz municipal, coletor de rendas além de postos para a Guarda Nacional.

Assim, os chefes locais tratavam de mobilizar o maior número de dependentes a fim de vencer as eleições que frequentemente eram tumultuadas, violentas e às vezes tragicômicas, onde, por exemplo, duas pessoas, chamadas de fósforo, se faziam passar por um votante já morto tentando convencer a mesa que eram o legítimo votante. O cúmulo desse absurdo era quando um “fósforo” disputava o direito de votar com o verdadeiro votante. Ganhar essa disputa era uma grande façanha que merecia pagamento em dobro.

Por outro lado, a parte mais truculenta do processo ficava a cargo dos capangas eleitorais, encarregados de promover ou resolver os “rolos” a fim de proteger os partidários, mas, sobretudo, amedrontar os adversários, de preferência evitando que estes comparecessem à votação, pois, com a presença deles votar era sempre perigoso.

Quanto ao voto em si, após a república, já não era a expressão de fidelidade ou de uma obediência forçada, como nos tempos coloniais; mas, tornou-se mercadoria a ser vendida pelo melhor preço e a eleição propriamente dita passou a significar a oportunidade para se ganhar um dinheiro fácil, uma roupa nova, um sapato ou, no mínimo, uma boa refeição.

Apesar da introdução do voto direto e das tentativas de reforma na legislação eleitoral, as fraudes e a venda do voto culminaram em uma escala cada vez mais crescente, sobretudo, à medida que o eleitor se dava conta da importância do voto para os chefes políticos e começaram a barganhar, objetivando vendê-lo mais caro. Os chefes, então, já não podiam confiar apenas na obediência, na lealdade ou na gratidão…Tinham que pagar pelo voto.

VALTER SILVA é Livre Pensador; formado em Letras pela UNEB.