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O Pecado da Escravidão

Filadélfia Bahia, Outubro de 2020.

*O PECADO DA ESCRAVIDÃO*

Passada a euforia da libertação, muitos ex-escravos voltavam humilhados às fazendas onde trabalhavam ou a outras vizinhas quando não eram mais aceitos pelos seus ex-senhores. Dezenas de anos após a abolição da escravatura no Brasil, os descendentes de escravos ainda viviam nas fazendas com uma vida pouquíssimo melhor que a dos seus antepassados outrora ali escravizados. Outros dirigiam-se a cidades como o Rio de janeiro onde acabavam engrossando ainda mais a grande parcela da população sem emprego fixo.

Em capitais como São Paulo, onde houve o dinamismo econômico provocado pela expansão do café, os ex-escravos foram também expulsos ou relegados por seus ex-senhores aos trabalhos mais brutos e mal pagos; enquanto que os novos empregos, tanto na agricultura quanto na indústria, foram ocupados por milhares de imigrantes italianos atraídos pelo governo para o país.

Toda essa cruel e desumana exclusão social, no entanto, não era resultado apenas do descaso aos negros logo após a Abolição da Escravatura no Brasil em 1888; onde, diferentemente dos Estados Unidos, que ao fim da escravidão negra não mediram esforços para educar e dar um mínimo de dignidade social aos cativos, poucas vozes, aqui, insistiram na necessidade de assistência aos libertos, no sentido de lhes proporcionar saúde, trabalho, moradia e educação.

O Brasil, na verdade, fôra o último país ocidental de tradição cristã a libertar seus escravos, e isso, quando o número de cativos existentes no país já era bem insignificante, em torno de 723 mil, que representavam apenas 5% da população brasileira. Antes da abolição, a posse de escravos era muito difundida no país; existindo ricos proprietários com grandes plantéis e muitos brasileiros com poucos; ou mesmo com apenas um escravo.

O aspecto mais chocante da propriedade escrava era, no entanto, o fato de muitos libertos também serem proprietários de escravos. Desse modo, ficava evidente que os valores individuais que eram a base dos direitos civis, tão caros à modernidade européia e aos americanos, não tiveram grande repercussão ideológica no Brasil, onde os valores da escravidão eram aceitos por quase toda sociedade, inclusive pelos próprios escravos, que embora tivessem lutado pela liberdade e até mesmo sofrido a crueldade escravidão, uma vez libertos, admitiam escravizar seus antes iguais e irmãos de raça.

Seguindo a tradição lusa, o novo pensamento abolicionista vigente em Portugal e no Brasil baseava-se em um argumento muito diferente dos abolicionismos europeu e norte-americano ao preconizar que a bíblia admitia a escravidão e que o próprio cristianismo condenava apenas a escravidão da alma causada pelo pecado. Os anglo-saxões, por seu turno, inverteram essa posição, afirmando que a escravidão do homem é que era o pecado maior e, fundamentados nessa tese, iniciaram uma longa e persistente luta pela abolição inicialmente do tráfico de negros e, mais tarde, da própria escravidão.

Já no Brasil, a própria religião oficial, representada pelo catolicismo, não combatia em nada a escravidão. Ao contrário disso; conventos, clérigos de ordens religiosas e padres seculares; todos, sem exceção, eram proprietários de escravos. Mais do que possuir pela lei, muitos padres possuíam também sexualmente suas escravas, chegando mesmo a se amigar e a ter filhos com elas.

Fora do campo religioso, o principal argumento que se apresentava a favor da abolição era a chamada razão nacional, usada por José Bonifácio, que apontava a escravidão como um obstáculo à formação de uma verdadeira pátria, mantendo uma parte da população subjugada por outra parte livre, inimigas entre si; impedindo, assim, a integração social e política do país e a formação de uma força armada poderosa e combativa.

Apesar dessas coerentes e lúcidas argumentações para que acontecesse a abolição da escravatura no Brasil, a chamada razão nacional não contou com o apoio, ou sequer, com a preocupação da elite brasileira que ao longo de todo período da escravidão sempre vislumbrou a presença do escravo tão somente como fonte de trabalho e, sobretudo, como simples mercadoria.

Da mesma forma, o argumento da liberdade individual não encontraria a mesma oratória e força que lhes eram características na tradição anglo-saxônica. Isso se deveu não somente à imposição do catolicismo aos negros, ensinando a mansidão e o conformismo e contra qualquer movimento de revolta ativo ou passivo; mas, especificamente, a uma tradição ibérica, vigente no Brasil na época da escravidão, contrária ao iluminismo libertário e alheia à ênfase nos direitos naturais ou na liberdade individual.

Essa tradição, muito embora tivesse apresentado algumas características positivas, como por exemplo, a visão comunitária da vida, insistindo no predomínio da cooperação sobre o conflito e da hierarquia sobre a igualdade, acabou sendo deturpada pela influência de um Estado Absolutista e pela própria ascendência da escravidão no Brasil.

A implantação de uma comunidade solidária em um regime escravista tornou- se, então, praticamente inviável; restando um simples apelo em favor de um tratamento benevolente, quase sempre ignorado, aos súditos e aos escravos. Nesse contexto, o melhor que se pôde obter foi o paternalismo do governo e dos senhores que, infelizmente, até poderia aliviar alguns sofrimentos, mas nunca construir uma comunidade autêntica e muito menos viabilizar o exercício ativo da cidadania.

As consequências dessa tradição legitimada pela religião dos senhores, era, em suma, uma eficiente forma de controle social, onde valores como conformismo, resignação e trabalho duro ,vistos como meio de se chegar ao paraíso, marcaram indelevelmente a vida cotidiana do escravo brasileiro, tendo seus efeitos persistido e atingido não apenas os negros.

Do ponto de vista da formação cidadã, a escravidão, consequentemente, acabou afetando tanto o escravo quanto o senhor: Isto porque, se por um lado, os escravos não puderam desenvolver a consciência de seus direitos civis; por outro lado, ou senhores tampouco o fizeram ao não admitir os direitos dos escravos e exigir privilégios para si mesmos. Dessa forma, se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima dela.

A libertação dos escravos, portanto, não trouxe consigo a igualdade real. Essa condição tão, afirmada na lei, era explicitamente negada na prática. Ainda hoje, apesar da legislação, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos.

*Por Valter Silva. (poeta e livre pensador).*