Diga News

CHEIOS DE PODER! Confira a crônica do professor Valter Silva


CHEIOS DE PODER!

A História em seu curso tem sido testemunha de ações deploráveis da vontade do homem, visando a se tornar soberano e enxergando sempre qualquer diferença como defeito. Nesse contexto, mesmo entre os homens, existem aqueles que são catalogados como espécies inumanas ou primitivas, indignas de viver e merecedoras, enfim, de extermínio. Entendendo que “humano” é a primeira identidade que afasta o homem de sua natureza animal, é lógica a compreensão de que em sua simbologia se autoidentifique como aquele que deve ocupar o topo da hierarquia social, sendo por isso, egoísta em relação ao outro, enxergado ou tido como menos humano.

Daí podemos imaginar que o homem se vestiu da identidade “humana” para se tornar príncipe de si mesmo e dominador daquele que ele não considera seu semelhante, uma vez que a noção de que todas as pessoas são iguais é absolutamente repudiada no insensível teatro da ” humanidade” no qual acima de qualquer consideração biológica, o ser “humano” é percebido como uma identidade da qual emana poder e que enxerga qualquer dessemelhança como uma vida inferior. À medida em que é autoidentificado na convicção de “ser superior”, o humano dissemina um persuasivo discurso a fim de massificar e também de materializar tal poder e supremacia. No livro O Príncipe de Maquiavel “os fins justificam os meios”. Assim, enquanto o príncipe se sente soberano pela hereditariedade de sangue que o consagra, os inumanos, nascidos dentro do discurso desse princípio, são subjugados, ficando à mercê de toda sorte de exclusão.

Seguindo nesse raciocínio, o “ser humano” justifica qualquer administração da vida inumana a favor do seu governo absoluto e opressor. Nessa ideologia, o inumano é fruto de um sistema que não o acolhe, é corpo capital e expressão de desgraça que não só vivencia o desprezo na ação do “humano”, como também é excluído pelo olhar, sofrendo a cada instante uma violência simbólica. Essa barbárie, iniciada por intermédio de uma construção identitária e cultural solidificada no conceito do “humano”, tem exemplos possíveis de ser relembrados em algumas narrativas históricas que transformaram seres humanos em inumanos: a trajetória do negro no Brasil, escravizado por várias décadas e perseguido até hoje por preconceitos e situações de violência em função de sua etnia; os cegos, as crianças Down e muitos outros que em um determinado período foram catalogados pela ciência como inumanos.

Nessa mesma linha, Hitler, em seu Estado regido por ideias fascistas, enxergava os judeus e as pessoas com deficiência como seres degenerados da espécie e indignos da vida. Para a ciência nazista, judeus, ciganos, retardados, homossexuais, além dos portadores de doenças incuráveis eram vidas sem valor, essencialmente inumanas e que foram literalmente queimadas em Auschwitz, um campo de concentração construído exclusivamente para essa finalidade, que simbolizava o medonho nazifascismo e em cujos fornos crematórios cerca de 20 mil “inumanos” eram diariamente transformados em cinzas. Aproximadamente cinco milhões de judeus foram mortos durante a Segunda Guerra Mundial.

O mundo, lamentavelmente, se acostumava à expansão da matança em escalas astronômicas, verificadas nesses fenômenos para os quais foi inventada a palavra genocídio, gerada justamente pela identidade que vestiu o homem de humano, fazendo-o não mais se reconhecer como animal, além de ver o outro como estranho e legitimando, desse modo, sua vontade de reinar sobre o diferente, como legitimo soberano.

Nos dias de hoje, a Ucrânia, mesmo sendo uma “civilizada” vizinha da Rússia, passa despercebida dessa condição de igualdade aos olhos de um poderoso príncipe, governo do Estado “humano”, que não leva em consideração que é tão semelhante ao ser por ele inferiorizado; cruelmente expulso e exterminado, em sua terra natal e dentro de sua própria casa. Não esqueçamos, porém, que não é somente o Estado autoritário e opressor, representado por seus intolerantes líderes “humanos”, que esmaga os oprimidos vistos como escória; também muitos grupos que compõem o tecido social nas mais diversas relações operam no sentido de fazer com que as pessoas tidas como inferiores tenham sua liberdade e autonomia diminuídas ou furtadas frente a outras, e que, efetivamente, suas vidas sejam ignoradas ou até mesmo descartadas.

Logo, o não reconhecimento do outro como ser humano digno de direitos promove a legitimação da violência. Talvez, a invasão russa deixe como ensinamento primordial que se hoje somos príncipes, seres “humanos” vencedores e cheios de poder, de repente, podemos nos tornar inumanos, sem subjetividade…, sem esperança…, sem nada. Quantos cidadãos e cidadãs da Ucrânia não se encontravam, antes, no habitual do “humano”, cada vez mais entorpecidos ou embrutecidos diante dos dramas alheios, cultuando seu próprio mundo e seu ego? Com a brutal e triste invasão, a dor que extermina o “inumano” é sentida pelo ser “superior”, que antes olhava e não reconhecia o outro como digno e igual. De “dito cidadão respeitado” ao desespero e à dor de frágil refugiado!

Há, então, uma mudança de olhar e a possível percepção de que somos todos essencialmente animais e essa é a nossa natureza mais verdadeira. Quem sabe o homem, conseguindo se livrar de sua indumentária de príncipe, que subordina as outras espécies à sua racionalidade, condenando-as a viver como inválidas, possa refletir sobre o valor “de se autodeclarar humano” e sobre o poder que tal identidade proporciona a quem acredita ou nela se apoia. Nu, em suma, em um lampejo de lucidez, quiçá o homem compreenda a urgência nos dias de hoje de repensar o lugar do outro e a construção das relações com ele, cujas demandas e necessidades são diferentes e mais urgentes que as suas. Ainda estamos distantes de uma humanidade mais digna e tolerante, contudo, fica a questão: até que ponto, os “humanos” pretendem ir para, finalmente, perceberem que caminhamos a largos passos para a autodestruição!

“BELLUM OMNIUM CONTRA OMNES!”

*Por Valter Silva*
*Valter Silva é pedagogo*

*Filadélfia Bahia, março de 2022.*