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AINDA NÃO ESTAMOS VACINADOS!

Na Revolta da Vacina, quando Oswaldo Cruz iniciou em 1904, o combate à varíola por intermédio da tradicional lei que tornava a vacinação obrigatória, os políticos que se opunham ao governo deflagraram uma campanha contra tal obrigatoriedade, que, no seu início, consistiu em apelo desses líderes oposicionistas, principalmente, para os perigos reais ou imaginários que cercavam a vacinação. Fazia-se, então, verdadeiro terrorismo sobre tais perigos. Contudo, o que mais atingiu a população foi o tom moralista que a campanha adquiriu aos poucos.

Buscava-se, a partir daí, explorar a ideia da invasão do lar e da ofensa à honra do chefe de família, ausente no momento em que sua mulher e filhas eram obrigadas a se desnudarem diante de estranhos. Embora a vacina fosse aplicada no braço, com a ajuda de uma lanceta, a oposição, através de seus argutos líderes e oradores de comício, passou a enfatizar a possibilidade da vacina ser aplicada na coxa das mulheres e das moças, junto às suas virilhas.

O motim popular finalmente explodiu ao ser anunciada em 10 de novembro de 1904 uma regulamentação muito rigorosa da lei, onde após o tradicional conflito com as forças de segurança e gritos de “Morra a polícia!” e Abaixo a vacina!”, a revolta se generalizou.

Apesar de existirem incentivadores para o levante, a exemplo dos políticos de oposição ao governo e do Centro de Classes Operárias, nenhum líder exerceu qualquer controle sobre a ação popular. Assim, além de apresentar espontaneidade e dinâmica própria, a Revolta da Vacina foi um protesto popular advindo do acúmulo de insatisfação do povo contra o governo.

Ações governamentais como a reforma urbana, que destruía casas e expulsava a população; bem como, medidas sanitárias que incluíam a proibição de cães e de mendigos nas ruas nas quais também era proibido se cuspir, e, por fim, a obrigatoriedade da vacina indignaram a população que se levantava, assim, para dar um basta àquele imoral abuso de poder do governo.

Sem levar em conta a real intenção dos seus promotores, essa revolta começou em nome da legítima defesa dos direitos civis, despertando a simpatia geral e culminando na abertura do espaço momentâneo de livre e ampla manifestação política que já não estava, portanto, restrita à luta contra a vacina.

Várias revoltas desabrocharam então dentro da própria Revolta da Vacina; como a conspiração militar aliada ao
Centro de Classes Operárias que pretendiam derrubar o governo. Também os consumidores de serviços públicos reivindicaram o cumprimento eficiente dos mesmos pelas companhias e os produtores mal pagos usaram do mesmo expediente com as fábricas. Todos cidadãos desrespeitados partiram, enfim, para um acerto de contas junto ao governo.

Opostamente a esses brasileiros da Revolta da Vacina, que lutavam pela defesa do direito dos cidadãos de não serem tratados arbitrariamente pelo governo, temos, em nossos dias, uma massa que longe de ser um segmento de baixo poder aquisitivo ou de pouca instrução educacional, representa um conjunto de homens e de mulheres que pretendem se tornar senhores; por isso, além de patriarcalistas, eles não se identificam com a vida periférica dos trabalhadores e dos oprimidos explorados pela ganância do excludente capitalismo ou da tirania de inescrupulosos governantes.

Havia, efetivamente, naquela época, uma atávica fragmentação social, herdeira da cultura escravocrata que impedindo o desenvolvimento do modelo artesanal abrira o caminho para a criação de vasto setor proletário, marcado politicamente por sua quase completa alienação junto a um sistema político que não lhe dava espaço.

Paralelamente, porém, existia um pacto informal de entendimento implícito sobre o que era cabível e pertinente à legítima interferência do governo na vida das pessoas. Desse modo, quando parecia à população que os limites tinham sido ultrapassados, emergia uma reação da mesma por conta própria e por via da ação direta.

Hoje, apesar de tantos avanços, especialmente na tecnologia de comunicação, temos, paradoxalmente, uma sociedade também fragmentada e com idêntica alienação política da maioria da população como no período da Revolta da Vacina.

Os movimentos convulsivos dos quais a massa contemporânea participa com tanto fervor são, porém, muito diferentes das verdadeiras lutas revolucionárias, pois representam tão somente um contagioso e ideológico individualismo de pessoas que não se dispõem a superar suas limitações, assumindo o papel de cidadãs, sem que autoridades externas exerçam sobre elas suas influências diretrizes, colocando-se como salvadores da pátria ou como uma luz no fim do túnel.

Na Revolta popular de 1904, o inimigo não era a vacina em si, mas a obrigatoriedade da mesma, porque violava o domínio sagrado da liberdade individual e da honra pessoal. A maneira de implementar essa ação governista arbitrária ameaçava interferir em todas as circunstâncias da vida, sendo que o próprio emprego do operário podia estar em perigo.

Ainda que a interrupção da vacina não tenha sido acompanhada por mudanças políticas imediatas, deixava, todavia, os sentimentos de auto estima renovada e de profundo orgulho; básicos para a implantação da cidadania, sobretudo em um país que naquele momento, apenas começava seu regime republicano.

Assim, além desse sentimento de orgulho e de auto estima cidadã, falta também consciência crítica a esta massa “pós moderna” que, orientada por agitadores de facções políticas partidárias, ainda não se deu conta de que ser livre é não estar submetido ao jugo da politicagem; e representa, principalmente, a garantia contra toda e qualquer dominação ou abuso, por parte daqueles que, ao chegar ao poder, Instituem a ditadura do privado e a execução da viciosa prática corrupta que hoje contamina toda a política brasileira. E contra esse mal, ainda estamos longe de ser vacinados!

*Por VALTER SILVA.*
*Valter Silva é professor*